Haverá Salvação Tecnológica Para A Água Do Planeta?
Por Meio Filtrante
Edição Nº 28 - Setembro/Outubro de 2007 - Ano 6
De acordo com as Nações Unidas, mais de um bilhão de pessoas carecem de acesso a água potável. Se as tendências atuais persistirem, a demanda por água potável irá subir cada vez mais
De acordo com as Nações Unidas, mais de um bilhão de pessoas carecem de acesso a água potável. Se as tendências atuais persistirem, a demanda por água potável irá subir cada vez mais
por João Carlos Mucciacito
Vivemos com a ilusão de uma oferta ilimitada de água no planeta. Nada mais falso! A quantidade de água doce disponível não passa de 0,5% de todas as águas na Terra. O resto é água do mar ou congelado nos pólos norte e sul. A renovação da água potável ocorre somente com as chuvas, a razão de 40.000 a 50.000 quilômetros cúbicos por ano. Devido à urbanização intensa, a desmatamentos e a contaminação por atividades industriais, mesmo essa pequena parcela de água potável está desaparecendo, causando a desertificação da superfície da terra. Se as tendências atuais continuarem, as águas de todas as bacias hidrográficas serão irremediavelmente degradadas e perdidas para o consumo.
O consumo global de água dobra a cada vinte anos, mais do que o dobro da taxa de crescimento da população humana. De acordo com as Nações Unidas, mais de um bilhão de pessoas carecem de acesso a água potável. Se as tendências atuais persistirem, por volta de 2025 a demanda por água potável irá subir em 56% a mais da quantidade atualmente disponível.
Com a intensificação da crise da água, governos no mundo todo –
sob a pressão das empresas transnacionais – advogam uma solução radical: privatização e
comercialização da água, alegando que somente assim seria possível prover água para um mundo sedento. Contudo, fica evidenciado que a venda da água não atende às necessidades da população pobre e sedenta.
Ao contrário, água privatizada é fornecida a quem pode pagar, tais como cidades e indivíduos ricos, ou indústrias água-intensivas como agricultura e mineração.
A pressão de transformar a água em commodity ocorre em um contexto onde os impactos sociais, políticos e econômicos
da escassez de água se transformam em fatores desestabilizadores, gerando conflitos ao redor do globo terrestre. Por exemplo, Malásia que controla metade da oferta de água de Singapura, ameaçou cortar o
suprimento em 1997, após críticas formuladas ao seu governo. Na África, as relações entre Botsuana e Namíbia ficaram estremecidas por causa dos planos da Namíbia de construir um aqueduto para desviar águas do rio Okavango, comum aos dois países. Entretanto, aqueles que lucram com o uso e abuso da água determinam o futuro de um dos recursos mais vitais da Terra. Um punhado de empresas transnacionais apoiadas pelo Banco Mundial assume de forma agressiva a administração de serviços de água públicos - nos países em desenvolvimento, elevando os preços aos residentes locais e lucrando com a busca desesperada do Terceiro Mundo de uma solução para a crise de água. Para as empresas, a resposta é uma só: água deve ser tratada como qualquer outro bem comerciável, com seus usos determinados pelos princípios do mercado.
Ao mesmo tempo, os governos cedem seu controle sobre os suprimentos domésticos de água,
participando de acordos comerciais tais como a NAFTA –
Associação de Livre Comércio das América do Norte, o seu possível sucessos – a ALCA e a OMC – Organização Mundial de Comércio. Essas instituições de comércio globais facilitam o acesso sem precedência para empresas transnacionais, aos recursos hídricos dos países signatários.
Algumas empresas já entraram na justiça para forçar os governos a conceder acesso a recursos hídricos domésticos. Sum Bett, uma empresa da Califórnia está
processando o governo Canadense pela legislação da NAFTA, porque a Colômbia Britânica proibiu a exportação de água, anos atrás. A empresa alega que as leis da Colômbia Britânica violam vários direitos de investidores, de acordo com o tratado
da NAFTA, e exige US$ 10 bilhões em indenização por lucros
cessantes. Sob a proteção desses
acordos comerciais internacionais, as empresas cobiçam o
aproveitamento de enormes quantidades de água potável, via desvios de cursos de água e supernavios. Empresas desenvolvem tecnologias pelas quais
grandes quantidades de água potável seriam carregadas em
enormes tanques e transportados pelos oceanos para venda. Vendendo água a quem oferece mais tenderá a exacerbar os piores impactos da crise mundial de água.
Várias instituições de pesquisa e ONGs ambientais têm alertado na última década: se continuar o uso predatório de água,
o resultado será a devastação
da Terra e de seus habitantes. Está em curso uma campanha em escala mundial, ainda que não totalmente coordenada,
para resistir à privatização e
mercantilização da água. No mais, inúmeras iniciativas surgem para opor-se à construção de novas mega-barragens, recuperar rios e margens prejudicados e enfrentando indústrias que contaminam os sistemas aquáticos.
A quem pertence à água?
Quem deve apropriar-se dela?
É lícito privatizá-la?
Em nome de que direito as empresas transnacionais estão
comprando sistemas de recursos hídricos?
Esses recursos podem ser comercializados como qualquer commodity no mercado?
De que leis necessitam para proteger a água?
Qual é o papel do governo?
Os países ou regiões ricos em recursos hídricos competem com os mais pobres, a quem cabe a responsabilidade de zelar pelo "sangue azul" da natureza?
Como envolver os cidadãos neste processo?
A água é herança da terra e deve ser preservada como bem público sempre e protegida por uma legislação forte, local, nacional e internacional. O que está em jogo é o conceito da comunicabilidade ou, a idéia
que através de instituições públicas identificamos um legado natural e humano comum a ser preservado para as gerações futuras. As comunidades locais devem assumir o papel
de guardiões dos recursos hídricos e estabelecer os princípios de seu uso racional e eqüitativo.
Em vez de permitir que este recurso vital se torne mais uma mercadoria a ser vendida a quem mais oferece, postulamos que o acesso à água para as necessidades básicas constitui um direito humano inalienável. Cabe a cada geração zelar para que a abundância e a qualidade da água não sejam diminuídas em conseqüência de atividades predatórias. Esforços devem ser feitos para
restaurar a saúde dos ecossistemas aquáticos que já foram degradados.
Para isto, precisamos reestruturar radicalmente nossas sociedades e o estilo de vida, a fim de reverter a depredação dos recursos hídricos e aprender a viver com eles de forma a sustentar os seres vivos e a natureza.
Nada mais perigoso do que o abuso dos preciosos recursos hídricos do mundo, apostando na tecnologia como resposta. Não haverá salvação tecnológica para um planeta com escassez crônica de água.
Texto condensado e traduzido do IFG Bulletin – Boletim do Fórum Mundial sobre a Globalização – Edição especial – versão 2001.
João Carlos Mucciacito é Químico da CETESB de Santo André, Mestre em Tecnologia Ambiental pelo Instituto de Pesquicas Tecnológicas de Estado de São Paulo, Professor no SENAC, no Centro Universitário Santo André - UNI-A e na FAENG da Fundação Santo André. E-mail: joaocarlos@fsa.br |