Trabalho E Ocupação: Reconciliação Dos Opostos

Independente da área a qual nos dedicamos profissionalmente e do tipo de vínculo que vamos estabelecer com as organizações de trabalho, não podemos abrir mão da interação constante de esforço e prazer


Nosso vocabulário tem sempre uma história que dá sentido à permanência ou transformação das palavras, traduzindo os caminhos que percorremos como humanidade. Na antiguidade, pessoas livres eram ocupadas com o exercício das atividades na Pólis (um misto de tribuna e mercado públicos) envolvendo a política, a oratória, as artes, a ciência. A ocupação era relacionada à prática de atividades livremente produzidas pela pessoa, visando à realização pessoal e o aproveitamento de seus talentos. Era também restrito aos homens porque as mulheres eram tidas como naturalmente sem ocupação ou, então, escravas. Possuir uma ocupação era ainda um verdadeiro indicador de status social, em uma sociedade onde as pessoas produziam motivadas pelo desejo e ambição, sem serem detentoras de empregos. Aliás, o trabalho, ou seja, o esforço despendido por uma pessoa subordinado às exigências objetivas para produzir algo, vinculado a nossa atual concepção de emprego, era destinado aos escravos. Foi somente após a revolução industrial que a palavra "trabalhador" passou a ser um adjetivo desejado e valioso, especialmente, no universo masculino; antes disso, um homem não precisava de um emprego para ser respeitado e cumprir seu papel de líder, provedor e amante.
Os empregos, a partir da era industrial, tornaram-se não apenas comuns, mas também importantes, sendo para muitos, até hoje, o único caminho disponível para a segurança, o sucesso e a satisfação das necessidades de sobrevivência. A palavra trabalhadora, como era de se esperar desde Adão e Eva, só foi cunhada quando os homens muito ocupados com seus empregos não deram mais conta do trabalho a ser feito. Assim, a "distração" com o lar e com os filhos passou a ser coisa de mulher não apenas desocupada, mas também atrasada, que ao evoluir, obviamente, teria que buscar um trabalho, ou seja, um emprego. Apesar de tornar-se trabalhadora empregada no sentido estrito da palavra, por muito tempo, a mulher ainda não foi considerada cidadã.
Vejam, fomos avançando e adulterando conceitos ao longo do processo civilizatório de tal forma que trabalho, concebido como ocupação econômica, transformou-se em emprego. Empregado, então, é quem tem um trabalho pago em dinheiro. Trabalhador é quem está empregado. Ocupado é quem se mata de trabalhar no emprego. E desocupado é quem não tem nem emprego e nem trabalho. Nesta reutilização de substantivos e adjetivos, fico pensando onde gente como eu se encaixa: exerço uma mesma ocupação por mais da metade de minha vida, de tal sorte que a seqüência de posições/graduações dentro dessa ocupação me rendeu o que se chama de carreira. Logo, não sou uma desocupada, mas também não possuo emprego, nem tenho salário.  Assim, não me encaixo na concepção de trabalhadora, embora trabalhe arduamente e produza com minha ocupação. Sem a segurança do FGTS, 13º, férias remuneradas, satisfaço as minhas necessidades com o acesso a bens e serviços através da renda que produzo, mesmo sem possuir um emprego, logo, não sou excluída, não me sinto insegura, nem sou um fracasso.
Gente como eu forçou novos vocabulários, como a criação da palavra empregabilidade, cuja definição é ainda obscura. "Conjunto de capacidades e competências que tornam a pessoa capaz de gerir o seu destino, inclusive provendo meios para sua subsistência, estando ou não empregada." A empregabilidade é fruto da demanda por ajustes que nomeiem corretamente as mudanças que acompanham as sociedades, algo que se relaciona com o fato das pessoas gerirem de modo personificado e empreendedor sua capacidade produtiva e seu tempo, resultando em renda, satisfação e adaptação às mudanças constantes que a carreira e o mercado impõem. Porém, ser empreendedor não significa ser empresário ou profissional liberal, mas sim estar constantemente motivado pela auto realização e desejo de assumir responsabilidades, aceitar desafios e arriscar-se. No final dos anos 90 não faltaram estudos que tentaram abarcar nova essa realidade, embora difundi-la e incorporá-la à vida passe bem longe da metodologia acadêmica, exigindo mentes abertas e dinamismo. Sintetizando muito, podemos dizer que nos dias de hoje o trabalho ficou associado com o emprego e a ocupação com a empregabilidade.
Será mesmo por acaso que as duas primeiras palavras (trabalho e emprego) são substantivos masculinos e as duas últimas (ocupação e empregabilidade) femininos? Deparar com esta constatação sexista e dicotômica inquieta porque olhando a vida percebemos que o todo é sempre mais importante que as partes isoladas. O que se espera cada vez mais é exatamente a mescla de aspectos antes tidos como contraditórios, por meio da qual podemos acessar o inteiro. Não importa a combinação que se faça entre trabalho e ocupação, emprego e empregabilidade, porque, vistos a fundo, nenhum é excludente dos outros. Então, independente da área que escolhermos para nos dedicar profissionalmente e do tipo de vínculo que vamos estabelecer com as organizações de trabalho, não podemos abrir mão da interação constante de esforço e prazer, de investimento e retorno, de qualidades e habilidades masculinas e femininas em partes equilibradas, flexíveis e sincronizadas. Nem da minuciosa dosagem de elementos opostos como autonomia/dependência, segurança/instabilidade, progresso/estagnação, entre tantos outros.
Há muitos mitos e tabus envolvendo a nossa trajetória profissional, mas na verdade, sustentar uma carreira com vínculo empregatício ou não, demanda persistência, planejamento, dedicação e investimentos. A ilusão de que quem não é empregado vive muito mais feliz e faz o que quer do seu dia é exatamente isto, uma ilusão, pois,  credibilidade, pontualidade e comprometimento com as exigências profissionais não se consegue apenas com o cartão ponto e o controle da chefia, e sim, com muita disciplina e responsabilidade vindas da decisão pessoal de fazer o melhor. O sonho de muitos, em busca de resultados melhores, é focado apenas em mudar de lado porque somos instigados sempre a acreditar que a felicidade está em outro lugar: quem está empregado quer ter a autonomia de quem não tem patrão; quem é autônomo se questiona se a segurança de um emprego não seria conveniente. Simplesmente não há uma resposta certa para isso e nem desprendida das contingências de cada pessoa. Olhar para dentro e ao redor de nós parece ser a melhor alternativa para fazermos nossa própria escolha, dosando a quantidade e qualidade do que vamos abrir mão ou receber.
Sendo uma escolha, mesmo que implique trabalho árduo, sempre será mais leve e mais agradável do que qualquer imposição.

Trabalho E Ocupação: Reconciliação Dos Opostos
Psicóloga/Psicoterapeuta; Consultora em Gestão de Pessoas, Perita em Avaliação Psicológica e Gestão de Equipes. Doutoranda em Psicologia/PUCRS, Mestre em Psicologia Clínica/PUCRS, Especialista em Gestão Empresarial/FGV, Especialista em Psicoterapia Psicanalítica/UNISINOS e Psicopatologia do Bebê/PARIS XIII.      
Fone: (51) 8188.0733 / tarciad@gmail.com



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