Volkswagen defende biocombustível brasileiro

Objetivo é combinar biocombustível com eletrificação, desenvolver motores flex, produzir modelos híbridos e avançar na pesquisa de células de hidrogênio


PEDRO KUTNEY, AB | De Piracicaba (SP)

Diante da programada convergência total para eletrificação do powertrain dos novos veículos Volkswagen até o fim desta década, Pablo Di Si, presidente da empresa na América Latina, decidiu lançar mão de uma estratégia alternativa para manter e aumentar a declinante relevância do Brasil e sua região nos planos globais do grupo – e no cenário automotivo mundial. Para isso a subsidiária vai redobrar as apostas em uma autêntica “jabuticaba” brasileira, algo que só existe aqui: o etanol combustível utilizado em larga escala desde os anos 1980, inventado no fim da década anterior para contornar a crise do petróleo e a escassez de combustíveis fósseis; e reinventado em 2003 com o lançamento do primeiro carro flex, um VW Gol, hoje uma solução incorporada por quase 90% dos automóveis vendidos no País.

O objetivo, segundo o Di Si, é combinar o biocombustível com eletrificação, desenvolver no Brasil motores bicombustível etanol-gasolina mais eficientes, produzir modelos com powertrain híbrido flex e avançar na pesquisa de células de hidrogênio extraído do etanol. “Com isso vamos levar essa jabuticaba para todo o mundo”, prometeu Di Si em evento realizado para a imprensa esta semana no Centro de Tecnologia Canavieira (CTC) em Piracicaba (SP), como parte de sua ofensiva para ganhar apoio à ideia e incentivar o biocombustível como solução sustentável e pronta para uso para reduzir as emissões de gases de efeito estufa e frear o aquecimento global.

“Sempre que se apresentam estratégias globais da companhia, só ouvimos falar de Europa, China e Estados Unidos. Como ficam então as outras regiões como Brasil ou Índia, onde não há condições nem incentivos para eletrificar a frota tão rapidamente? Nós temos essa alternativa: o etanol de cana é o combustível do futuro, com redução de emissões de CO2 até maior do que um elétrico na Europa quando medimos o ciclo completo do combustível, desde a produção até o escapamento. Isso não é mais uma jabuticaba”, defendeu Pablo Di Si.

Com esta tecnologia desenvolvida no País há mais de 40 anos – e que pode ser bastante melhorada –, Di Si pretende incluir o Brasil na estratégia global de descarbonização Way to Zero recentemente apresentada pela Volkswagen, que entre outras iniciativas prevê o lançamento até 2030 de 130 novos veículos eletrificados, 70 elétricos e 60 híbridos. “O mais fácil seria importar esses modelos para cá, mas como fica nossa indústria aqui?”, ele pergunta. “Precisamos caminhar com nossas próprias pernas e encontrar soluções adequadas à nossa realidade, que no momento não é só o carro elétrico”, responde.

EXPORTAR TECNOLOGIA

A ideia, destaca Di Si, não é só exportar veículos flex ou híbridos flex a partir do Brasil, mas vender a tecnologia para o mundo todo e ganhar escala e royalties com isso. Ele cita o exemplo do VW Play, central de infoentretenimento desenvolvida pela engenharia brasileira da empresa e hoje incorporada em mais de 70 países que pagam à subsidiária pelo uso da tecnologia. O executivo espera fazer o mesmo com o desenvolvimento de propulsão a etanol, seja puramente a combustão ou híbrida eletrificada.

O presidente da Volkswagen América Latina confirma que a estratégia é fixar no Brasil o desenvolvimento global da companhia de motores a combustão, que serão totalmente abandonados na Europa já a partir da próxima década, segundo imposição da Comissão Europeia.

“Sem ter como eletrificar a frota aqui tão rapidamente, se continuarmos a desenvolver motores flex só para um mercado de menos de 2 milhões de veículos [por ano], claro que vamos perder relevância no mundo. Mas se projetarmos aqui propulsores que rodam com etanol em conjunto com tecnologia híbrida, isso nos coloca em um mercado global potencial de 11 milhões [de unidades/ano], considerando só as vendas da Volkswagen no mundo hoje”, calcula Di Si.

Um desses mercados potenciais é a Índia, que prepara legislação para tornar obrigatória a adoção de motores flex no país, que é o quarto maior importador de gasolina do mundo e gera 73% de sua energia elétrica em usinas a carvão – e por isso de nada adiantaria ter carros elétricos alimentados por fontes altamente poluentes. Este mês o embaixador indiano no Brasil, Shri Suresh Reddy, visitou as instalações da Volkswagen em São Bernardo do Campo, como um início de tratativas para transferência da tecnologia flex.

PROJETO EM ANDAMENTO

O executivo contou que, pela primeira vez, levou apenas uma ideia ao conselho da companhia, em vez de um plano de negócios completo. Segundo ele, a prioridade era incluir o etanol na estratégia global do grupo e assim garantir a relevância da operação na região dirigida por ele. Segundo Di Si, a proposta foi aceita e por isso foi anunciado no último dia 12 que a Volkswagen do Brasil será o centro global dos estudos e pesquisas de novas soluções tecnológicas baseadas no etanol e em outros biocombustíveis.

O próximo passo agora é desenhar o planejamento estratégico para a instalação, provavelmente até o fim deste ano, do centro tecnológico especializado em etanol e biocombustíveis, que ficará sediado dentro do complexo industrial da Anchieta, em São Bernardo do Campo (SP), com possível ramificação na fábrica de motores de São Carlos (SP). Di Si indica que não há tempo para incluir as verbas para o projeto no próximo ciclo de investimentos da Volkswagen no Brasil que deverá ser anunciado nos próximos meses, o que deverá provocar o remanejamento de recursos ou a aprovações de aporte adicional, ainda a ser estudado.

Não estão descartadas parcerias no investimento com fornecedores, instituições de pesquisa e desenvolvimento e até mesmo outros fabricantes de veículos. Di Si explica que a Volkswagen já domina dois de três pilares principais de desenvolvimento previstos para serem realizados nos próximos anos. “Motores flex e híbridos já sabemos como fazer, vamos buscar melhorias dessas tecnologias. O que não conhecemos é a tecnologia de células de hidrogênio (extraído do etanol) para veículos elétricos. Isso vamos desenvolver a mais longo prazo e teremos de buscar parceiros para fazer, como universidades ou centros de pesquisa como temos aqui no CTC (Centro de Tecnologia Canavieira)”, diz.

Em 2020, quase 94% das vendas da Volkswagen no Brasil foram de veículos flex etanol-gasolina, porcentual que segundo indica Di Si deverá crescer para 97,2% até 2025, ficando acima da média do mercado total, que em 2019 ficou em torno de 88%. Também está nos planos, “no médio prazo”, a produção de modelos híbridos flex nas fábricas brasileiras, informa o executivo.

COMBUSTÍVEL SUSTENTÁVEL PODE SUPERAR ELETRIFICAÇÃO

O Brasil tem matriz energética limpa, 64% gerada a partir de hidrelétricas, que têm a contraindicação de depender de condições climáticas favoráveis (chuvas) para operar com eficiência. Justamente por isso o potencial dos biocombustíveis é enorme: hoje representa só 9% da geração elétrica, mas pode chegar a 30% nos próximos anos com aumento do uso da biomassa dos canaviais (bagaço e palha) para queima em usinas térmicas. Nem por isso, contudo, será fácil adotar carros elétricos em profusão aqui, pois o País não tem energia suficiente para alimentá-los.

Pelas estimativas atuais, para eletrificar toda a frota brasileira seria necessária geração adicional de 200 TWh, o equivalente a duas hidrelétricas do tamanho de Itaipu, a segunda maior do mundo. Segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Energética (EPE), a implantação no Brasil de um sistema smart grid para recarregamento de veículos elétricos custaria algo entre US$ 210 bilhões a US$ 300 bilhões – cifra que representa o total de reservas internacionais do Brasil.

Com tamanhas limitações físicas e financeiras, o horizonte fica longo para adoção de carros elétricos em larga escala no mercado brasileiro. Além disso, o País pode reduzir suas emissões de forma muito mais rápida e barata com o aumento do uso de etanol. Segundo cálculos da Unica (União da Indústria da Cana-de-Açúcar), considerando o ciclo completo do poço à roda – inclui o plantio e colheita da cana, seu processamento, transporte e distribuição, além do uso nos carros –, um veículo alimentado exclusivamente com a gasolina brasileira (com 27% de álcool anidro) emite 131 gramas de CO2 por quilômetro, contra apenas 37 gCO2/km abastecido integralmente com o etanol de cana, valor menor do que um modelo a bateria na Europa, que alimentado pela matriz energética atual da região emite 54 gCO2/km – e emitiria 35 gCO2/km se usasse a energia mais limpa gerada no Brasil. Já um híbrido flex, como um Toyota Corolla já produzido aqui, apresenta a melhor relação de eficiência: abastecido só com etanol tem emissão de 29 gCO2/km.

A questão prioritária, portanto, é aumentar a eficiência do cultivo de cana e produção do etanol para reduzir seu preço e assim convencer o consumidor a usar o biocombustível em seu carro flex – algo que hoje só acontece em 30% da frota bicombustível, pois o álcool só tem vantagem financeira sobre a gasolina em poucos estados no Brasil. Para Di Si, a questão também é informar a população sobre os benefícios ambientais do uso do etanol. “Isso pode ser feito de diversas maneiras, com campanhas e comunicação. Nós queremos fazer a nossa parte. Por exemplo, recentemente incluímos nos aplicativos do VW Play a funcionalidade de calcular o custo e as emissões de CO2 com o uso de cada combustível. Acredito que esse também é um valor que o consumidor vai passar a considerar em sua decisão”, defende.

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