Mudanças climáticas pode ser consideradas uma ameaça à indústria automotiva
Automotive Business -
Anfavea e BCG apresentam estudo com possíveis rotas de eletrificação e uso de biocombustíveis na frota brasileira
PEDRO KUTNEY, AB
As mudanças climáticas e a transformação em curso da matriz energética veicular em todo o mundo podem ser consideradas uma ameaça à sobrevivência da indústria automotiva no Brasil, mas também é uma grande oportunidade. É o que mostra recente estudo sobre a possíveis rotas de descarbonização do setor automotivo no País, elaborado pela Anfavea, a associação dos fabricantes de veículos, e o Boston Consulting Group (BCG). Dependendo do caminho a ser escolhido, esse processo poderá estimular investimentos calculados em R$ 150 bilhões no horizonte dos próximos 15 anos, incluindo a produção nacional de veículos leves e pesados híbridos e elétricos, construção de fábricas de baterias e semicondutores, além da própria evolução no uso de biocombustíveis como etanol, biogás, HVO e biodiesel.
Para Luiz Carlos Moraes, presidente da Anfavea, os cenários traçados no estudo com o BCG podem até demorar um pouco mais para acontecer, mas o caminho para descarbonizarão do transporte terá de ser percorrido de qualquer maneira também no Brasil diante dos riscos do aquecimento global para todo o planeta – como realçou ainda mais o último relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, da ONU) divulgado esta semana, que mostra a iminência de um ponto sem retorno de alterações no clima que vão causar perdas humanas e econômicas catastróficas nos próximos anos.
“A questão ambiental é fundamental para o planeta e muitos consumidores já estão conscientes disso, querem produtos alinhados com esse objetivo. Por isso não há alternativa, é inevitável seguir a rota da descarbonizarão, que abre oportunidades que não podemos perder. Podemos ter um novo boom de investimentos do setor no Brasil comparável aos anos 1960”, avalia Luiz Carlos Moraes.
O presidente da Anfavea indica que a legislação vai estimular e tornar obrigatórios vultosos investimentos para trilhar a rota de descarbonização e eles virão de diversas fontes, incluindo as matrizes dos fabricantes de veículos no exterior. “As empresas estão preocupadas com sua pegada ambiental não só nos países desenvolvidos, mas em todo o planeta. Por isso vão investir aqui também. Até porque não será possível atingir metas de redução de emissões só com os veículos tradicionais, outras alternativas tecnológicas terão de ser desenvolvidas”, aponta.
Moraes acrescenta ainda que atualmente no empresas de grande porte começam a implementar políticas internas de ESG (sigla em inglês para meio ambiente, social e governança) com metas autoimpostas de redução de emissões em toda sua cadeia de produção e distribuição, o que obriga à conversão de frotas próprias e contratação de transportadores que usam veículos com menor pegada ambiental. Já existem bons exemplos nesses sentido: a Ambev tem objetivo de reduzir em 25% suas emissões de carbono em toda sua cadeia de valor até 2025, enquanto a JBS quer zerar essas emissões até 2040.
CENÁRIOS POSSÍVEIS
Masao Ukon, sócio do BCG que coordenou o estudo em conjunto com a Anfavea, aponta quatro forças que atualmente influenciam ou dificultam a adoção de rotas de descarbonização da matriz energética veicular no Brasil: a primeira é a falta de regulação ou incentivos do governo, que não tem uma política definida para o assunto; a segunda é o custo ainda muito alto de veículos elétricos, que ficam ainda mais elevados em mercados de baixo poder aquisitivo; a terceira é a grande capacidade ociosa de produção dos fabricantes de veículos, mais focados em modelos de menor valor agregado; e por fim o País tem a alternativa dos biocombustíveis, com ampla estrutura de produção e distribuição, que torna desnecessária ou não tão urgente a adoção de eletrificação.
Nos cenários traçados, o BCG aponta que a partir de 2035, a depender dos incentivos dados à eletrificação, o Brasil poderá atingir volumes entre 1,3 milhão e 2,5 milhões de veículos eletrificados vendidos por ano, algo em torno de 32% a 62% do mercado anual de automóveis e comerciais leves, incluindo híbridos leves (com circuito de 48V e motor elétrico para impulsão), híbridos (plug-in e fechados) e 100% elétricos. “Não se concebe que todos esses veículos serão importados, a maioria deverá ser feita aqui, incentivando e obrigando os fabricantes, seus fornecedores e redes de distribuição a investir”, aponta Moraes.
Na hipótese de maior penetração de modelos eletrificados no Brasil, seguindo a tendência global, o BCG calcula que no horizonte de 15 anos serão necessários investimentos de R$ 14 bilhões para criar uma rede de 150 mil pontos de recarregamento de baterias para atender a uma frota de elétricos e híbridos plug-in não muito maior que 3 milhões de unidades. Ainda assim, o País seguiria na lanterna mundial da eletrificação entre os maiores mercado do mundo – a produção mundial de veículos eletrificados saltou de 2,4 milhões em 2015 para 8,4 milhões em 2020 e a expectativa é que esse volume vai mais que triplicar até o fim desta década; estão previstos lançamentos de mais de 400 modelos elétricos e híbridos plug-in só até 2025.
“As mudanças climáticas impõem desafios sem precedentes e no mundo a eletrificação é o foco, mas o Brasil tem caminhos complementares com os biocombustíveis para avançar mais rápido na descarbonização dos veículos”, avalia Masao Ukon.
Em um cenário com maior protagonismo dos biocombustíveis, na visão do BCG, o etanol passaria a representar em 2035 algo como e 61% do consumo na matriz energética veicular brasileira, o que obrigaria as usinas a produzir 18 bilhões de litros de álcool combustível adicionais aos 32 bilhões destilados em 2019, o que implicaria em investimentos de R$ 50 bilhões em 15 anos, elevando em 1 milhão a 2 milhões de hectares a área plantada de cana para a produção – o que é um número pequeno para o Brasil, tendo em vista que hoje as plantações para fabricação de açúcar e etanol ocupam 27 milhões de hectares, ou menos de 0,8% do território brasileiro.
O aumento do uso de etanol é o caminho mais rápido para descarbonização da frota brasileira de veículos leves, pois a frota de modelos flex já é grande e existe no País produção e distribuição em larga escala do biocombustível (não seria necessário investir tanto em pontos de recarga elétrica). Com isso, mesmo com o crescimento estimado de 37% na frota circulante nos próximos 15 anos, apenas elevando o consumo de etanol, as emissões cairiam 11% no período 2020-2025, de 79 milhões de toneladas de CO2 por ano para 71 milhões, segundo calcula o BCG no ciclo “do poço à roda” – que leva em conta o cultivo da cana, produção do combustível, distribuição e queima no motor, considerando a reabsorção do CO2 emitido pelas próprias plantações.
O presidente da Anfavea considera mais provável um cenário híbrido para o Brasil, com convergência para eletrificação e protagonismo dos biocombustíveis. “Minha visão pessoal é que o País deverá adotar maior volume de carros elétricos nos próximos anos, até porque as matrizes dos fabricantes não têm tantos recursos para dividir no desenvolvimento e vão focar no lançamento de modelos eletrificados. Ao mesmo tempo, não se pode desconsiderar a vantagem de se usar o biocombustível para reduzir rapidamente as emissões aqui”, pontua Moraes.
No segmento de veículos comerciais pesados, os cenários desenhados pelo BCG revelam adoção bem mais lenta da eletrificação e combustíveis alternativos renováveis de baixa pegada de carbono. O diesel deverá seguir dominante, saindo de quase 100% das vendas em 2020 para 87% em 2035 na pior hipótese ou 68% na melhor, considerando neste caso a implantação de motorização elétrica em 15% dos caminhões e ônibus vendidos, 10% a gás natural (ou biogás) e 7% com geradores elétricos químicos (células de combustível a hidrogênio).
O BCG estima que, caso seja adotada uma política de incentivo, o uso de biocombustíveis para veículos pesados no Brasil poderá avançar de 12% em 2020 para 25% em 2030 e 30% em 2035, com aumento da relevância do HVO (diesel produzido a partir de óleos vegetais) para 15% do mix e do biodiesel para outros 15%. Na projeção mais conservadora da consultoria, em que 87% dos caminhões e ônibus no País seguiriam rodando apenas com diesel, 7% usassem gás e outros 7% fossem elétricos, a emissões de CO2 aumentariam de 153 milhões de toneladas em 2020 para 168 milhões em 2035, mas o maior uso de biocombustíveis para 30% da matriz energética do transporte de carga e passageiros no País reduziria em 9% as emissões, que se manteriam nos mesmos 153 milhões de toneladas/ano ao longo de 15 anos, mesmo com o crescimento da frota estimado em 12% no período.
“As novas fases da legislação brasileira não aceitam desaforos. Será mandatório usar novas tecnologias e biocombustíveis para reduzir as emissões de poluentes e CO2. Será necessário incentivar a produção de etanol e biodiesel, a Petrobrás precisará investir bilhões para produzir todo o HVO que vamos precisar consumir no País”, destaca Moraes.
FALTA POLÍTICA
A Anfavea convidou membros do governo federal, dos ministérios da Economia, Minas e Energia e Meio Ambiente, para acompanhar a primeira apresentação do estudo com o BCG, que ficou pronto na semana passada e foi divulgado na terça-feira, 10. A intenção agora, indica Moraes, é provocar reações para promover discussões com o objetivo de criar uma política nacional de descarbonização do setor automotivo nacional, a exemplo do que já acontece em países da Europa, Estados Unidos, China e Índia. “A partir dos cenários que mostramos, é possível traçar vários caminhos, mas é importante escolher essa rota o quanto antes”, defende o dirigente.
“As vias da eletrificação ou do maior uso de biocombustíveis precisam ser estimuladas pelo governo, com uso do sistema tributário não só para arrecadar, mas para incentivar a descarbonização”, acrescenta Moraes, citando exemplos dos incentivos de governos europeus ou descontos de impostos nos Estados Unidos para quem comprar carros elétricos, ou a redução de pedágios para veículos eletrificados. “É mandatório o investimento em novos carros, mas também é a inspeção veicular para tirar de circulação mais de 26 milhões de veículos antigos e renovar a frota com modelos menos poluentes e mais eficientes.”
Moraes afirma que encontra receptividade em áreas do governo brasileiro para discutir a criação de uma política pública de descarbonização do setor de transportes, que no momento é responsável por apenas 13% das emissões de gases de efeito estufa no País, contra 27% do desmatamento e queimadas e 35% da agropecuária. A participação da circulação de veículos nas emissões de CO2 é bem maior nos 23 países da União Europeia (23%) e nos Estados Unidos (29%), o que justificaria a maior preocupação com a indústria automotiva nessas regiões. “Temos influência menor nas emissões no Brasil, mas nem por isso vamos ficar de fora das discussões, queremos dar nossa contribuição”, afirma o presidente da Anfavea.
“O Brasil já tem grande vantagem com o uso de biocombustíveis e também tem grande potencial para eletrificação, com fontes renováveis de geração de energia e grandes reservas de minerais como lítio, níquel e grafite para produção de baterias. Porém, isso tudo exige investimentos bilionários e políticas unificadas de estímulo”, resume Henry Joseph Jr., diretor técnico da Anfavea. “Hoje o País tem diversas iniciativas como o Renovabio, Programa do Biodiesel, Novo Mercado de Gás, Programa Nacional de Hidrogênio, além ou desconto em impostos para carros híbridos e elétricos. Contudo, são políticas que não conversam muito entre si, é necessário criar uma convergência”, sugere.