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Explosão da indústria automobilística ajuda a levar urbanização e empregos para todo o mundo

Limites menores trazem menos acidentes, menos mortes, menos poluição, menos barulho e mais espaço para ciclovias sem comprometer o fluxo


A cada dia, mais de 3.500 pessoas morrem nas ruas e rodovias do mundo. São índices assustadores, mas que refletem uma realidade dura: a falta de discussão sobre limites de velocidade menores. Após a Revolução Industrial, a explosão da indústria automobilística ajudou a levar urbanização e empregos para todo o mundo. Mas ela trouxe consigo uma cultura de enxergar os carros como únicos personagens importantes da mobilidade, conceito que só está sendo rediscutido agora.

Em 2008, a OMS lançou o manual Gestão da Velocidade, com recomendações para governos acerca de políticas viárias. O documento crava: “A maioria dos especialistas em segurança no trânsito concorda que o primeiro culpado pelo número de mortes nas vias públicas em todo o mundo é a péssima escolha da velocidade, comumente conhecida como uso de velocidade inadequada ou ‘excesso de velocidade’”.

Também é dito no documento que um aumento de 5% na velocidade média leva a um aumento de cerca de 10% nas colisões com lesões e de 20% nas colisões fatais. A recomendação da OMS é um limite de 30 km/h para vias locais, de até 50 km/h para vias com cruzamentos (pois neles pode haver colisões de impacto lateral no pedestre, que são mais perigosas) e de até 70 km/h para vias em que há risco de colisão frontal entre veículos.

Mas não é bem isso que se vê por aqui. No Brasil, o Código Brasileiro de Trânsito estabelece, para as vias urbanas, limites de 80 km/h nas vias de trânsito rápido, 60 km/h nas vias arteriais, 40 km/h nas vias coletoras e 30 km/h nas vias locais. Segundo relatório de 2019 da Organização Panamericana de Saúde (Opas), nós somos o nono país com maior taxa de mortes no trânsito nas Américas. São 19,7 mortes por 100 mil habitantes.

“Atualmente, no Brasil, o grupo mais vulnerável é o dos motociclistas, que representam 35% das mortes no trânsito”, afirma Danielle Hoppe, gerente de Mobilidade Ativa do ITDP Brasil. Ela explica que, antes, os pedestres eram as maiores vítimas, mas que essa tendência começou a se inverter com o aumento da frota de motocicletas. “Os ciclistas hoje representam 4% mortes no trânsito, os ocupantes de automóvel, 22%, e a gente tem uma fatia de 19% de ‘outros’ ou ‘não identificados’, que dá também um indício de outro problema sério que temos, que é o registro dessas mortes e ferimentos, que muitas vezes têm pouca informação e dificultam o entendimento preciso do problema”, observa ela.

Para piorar, o cenário é de retrocesso. Em 2020, o Código Brasileiro de Trânsito foi alterado pela lei 14.071, que aumentou de 20 para 40 pontos o limite de infrações que acarreta a perda da carteira de habilitação, o que permite que motoristas infratores sigam dirigindo impunemente. Outras medidas polêmicas da lei foram a conversão automática de multa para advertência para algumas infrações e a diminuição de exigências no processo de formação de condutores.

O projeto de lei que instituiu essas alterações foi entregue pessoalmente pelo presidente Jair Bolsonaro à Câmara dos Deputados em 2019, tornando-se uma bandeira de seu governo.

Velocidades menores causam mais engarrafamento?
Quando se fala em diminuir limites de velocidade, a maior preocupação dos civis costuma ser um possível aumento nos engarrafamentos. Mas as estatísticas mostram que, na verdade, isso não acontece.

Uma pesquisa de 2017 da Universidade de Barcelona estudou uma rodovia espanhola sob limites de 80 km/h, 60 km/h e 40 km/h. A conclusão foi que diminuir a velocidade permite mais carros no mesmo espaço sem que o fluxo seja prejudicado. Isso porque, em velocidades menores, os motoristas sentem que precisam de menos espaço para frear e parar, portanto se mantêm mais próximos dos outros carros. “Em outras palavras”, diz o estudo, “motoristas são capazes de viajar em baixas velocidades com espaçamentos pequenos, mantendo uma taxa de transferência entre faixas relativamente alta e estável”, afirma.

Especialistas em trânsito concordam com essa tese. “A diminuição da velocidade faz com que a distância entre os veículos também diminua, e pode, assim, resultar no aumento da capacidade de fluxo na via. Além disso, a redução das velocidades faz com existam menos sinistros de trânsito, os quais são uma causa frequente de congestionamento”, afirma Danielle Hope.

Silvia Cristina Mugnaini, presidente da ABSEV (Associação Brasileira de Segurança Viária), também defende que menos velocidade traz mais segurança. “Sem dúvida, menor limite de velocidade é um ganho e um benefício aos mais vulneráveis, que ficam expostos ao risco físico, como por exemplo os motociclistas, pedestres e ciclistas. Reduzir os limites de velocidade é o melhor instrumento de segurança viária no ambiente urbano”, afirma ela.

Na Europa, esse discurso já se torna realidade. Só em 2020, a Espanha reduziu os limites de todas as vias urbanas de mão dupla para 30 km/h, a Holanda aprovou uma lei de redução para 30 km/h em todas as áreas urbanas e Paris estendeu o limite de 30 km/h para todo seu território, com exceção de alguns bolsões. Bruxelas, capital da Bélgica, está com o limite de 30 km/h em toda a cidade e em Oslo, na Noruega, o limite de 30 km/h vale para todas as áreas escolares.

Muitas dessas medidas derivam da Declaração de Estocolmo, assinada em 2020 por 140 países, incluindo o Brasil, com um comprometimento de reduzir pela metade as mortes no trânsito até 2030. Mas no Reino Unido, por exemplo, a preocupação é outra: a poluição. Lá, 60% da população vive em áreas com níveis inseguros de dióxido de nitrogênio (NO2). A diminuição de velocidade em nove rodovias, com trechos chegando a 65 km/h, é parte de uma série de ações para diminuir esses níveis.

Fora da Europa, também há bons exemplos. Em 2021, a Coréia do Sul diminuiu o limite em áreas urbanas de 60 km/h para 50 km/h e viu uma queda de 16% nas mortes de pedestres e nenhum aumento nos tempos de viagem. Em Sydney, na Austrália, houve uma diminuição para 40 km/h em vários trechos em 2014 e, agora, discute-se a aplicação do limite em toda a cidade.

Nos EUA, o melhor exemplo é Nova York, que começou a reduzir em 2014 a velocidade de suas vias urbanas para 40 km/h, além de aumentar a fiscalização e elaborar planos de segurança para o pedestre. Entre 2014 e 2017, caíram em 28% as mortes no trânsito e em 45% as mortes de pedestres.

Exemplos brasileiros
Quando se fala de diminuição de velocidade no Brasil, é impossível ignorar o caso de São Paulo. Em 2015, o então prefeito, Fernando Haddad (PT), reduziu para 50 km/h o limite de velocidade em todas as vias arteriais (que fazem ligações entre bairros, têm semáforos e acessos a ruas secundárias). As marginais do rio Tietê e Pinheiros tiveram regras especiais: a velocidade passou de 90 km/h para 70 km/h nas pistas expressas, de 70 km/h para 60 km/h nas centrais e de 60 km/h para 50 km/h nas pistas locais.

Deu resultado: entre 2015 e 2016, o número de mortes nas marginais Tietê e Pinheiros caiu 57,14%. O próximo prefeito, João Dória (PSDB), que se elegeu sob o slogan “Acelera SP”, resolveu reverter as mudanças nas marginais: em 2017, aumentou o limite das pistas locais para 60 km/h, da pista central para 70 km/h e da pista expressa para 90 km/h. Mas, pressionado por entidades civis, não mexeu nos limites de outras vias.

“Por sorte, a estratégia do candidato apressado foi aumentar as velocidades praticamente somente nas marginais, mantendo a redução das velocidades nas outras vias da cidade”, afirma Victor Callil, coordenador de pesquisa do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). “Com isso, ele não invalidou todo o esforço anteriormente realizado para a produção de uma mobilidade urbana mais segura, de forma que a maioria das vias da cidade teve sua velocidade reduzida mantida, bem como a infraestrutura cicloviária e políticas de melhoria da mobilidade a pé”, afirma. Ele ressalta que, em 2010, a capital paulista tinha praticamente 12 mortes no trânsito para cada 100 mil habitantes e que, em 2019, esse número caiu para 6,4, quase a metade.

Outro estudo de caso importante no país é o de Fortaleza. Desde 2016, a capital cearense passou a reduzir gradativamente a velocidade máxima de suas principais vias para 50 km/h, além de ampliar programas de transporte ativo e ter investido em sua malha cicloviária, que ultrapassou os 300 km. Um estudo de 2021 constatou que a média de acidentes com mortes em Fortaleza caiu 67% em vias que tiveram a velocidade reduzida entre 2016 e 2020.

Em 2020, Fortaleza ganhou o Prêmio Internacional Visão Zero para a Liderança Juvenil, concedido por organizações internacionais de segurança viária, devido às políticas de trânsito que resultaram na diminuição de mortes e lesões infantis. 

Em Curitiba, agora o limite é de 50 km/h, com apenas 6% das vias da cidade permitindo velocidades maiores que isso. Esse movimento começou em 2015 e deu resultado: em um ano, a capital paranaense registrou uma queda de 34,5% no número de acidentes.

Uma mudança de paradigma
Os especialistas ouvidos por Mobility Now concordam que a diminuição geral de limites de velocidade ainda encontra muitas barreiras no Brasil. “No Brasil, temos dois obstáculos”, afirma Rafael Calabria, geógrafo e coordenador de mobilidade do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). “Talvez o mais forte seja o cultural. O carro é visto como status, a velocidade é vista como poder. Temos um incentivo à cultura de racha, de corrida, temos toda uma cultura que glorifica a velocidade. E isso se reflete no senso comum, que entende que velocidade baixa é ineficiência”, argumenta ele.

O segundo ponto, diz Calabria, é que essa percepção cultural contaminou as políticas públicas do setor. “Criou-se muita produção técnica para atender essa idolatração de velocidade. Principalmente 20, 30 anos atrás, os órgãos de trânsito produziam ruas pensando em velocidade. Criava-se muitas vias expressas e isso era entendido como tecnicamente correto. Hoje já ocorre essa mudança de aplicar a técnica a conforto, segurança, mobilidade, etc.”, afirma ele.

“Existe uma questão cultural sim, mas que campanhas educativas não resolvem”, afirma Victor Callil, do Cebrap. “Acredito que, do ponto de vista operacional, é preciso dar aos técnicos de trânsito, bem como urbanistas e engenheiros de tráfego, mais conhecimento. Essas pessoas precisam ser levadas a sério e serem ouvidas nas instâncias municipais de decisão, em especial no Executivo e no Legislativo”, acredita ele, lembrando que toda a literatura atual de segurança viária exalta os benefícios da diminuição de velocidade.

“Os condutores dos motorizados individuais, em geral, se sentem vítimas de uma cidade hostil a eles e seus veículos, mas eles não percebem que quase 100% de todo esforço da gestão viária, é feito para que eles consigam circular com suas máquinas”, afirma Callil, que dá como exemplos a semaforização, o recapeamento e a drenagem de vias, a sinalização e o rodízio. “Não se atentam para o fato de que ocupam cerca 80% do espaço viário, mas, pegando São Paulo como exemplo, carregam apenas 30% da população, proporção que se reproduz em outras grandes cidades”, alerta ele. 

Em 2018, a diretora do Departamento de Doenças Não Transmissíveis da OMS, Etienne Krug, recomendou que as cidades brasileiras estabelecessem um limite de velocidade de 50 km/h para diminuir as mortes. “O Brasil está fazendo progresso, mas muito mais precisa ser feito”, disse ela. Resta esperar que o progresso não demore muito.

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